O cenário otaku nacional começou este ano de 2023 em polvorosa pelos mais diversos motivos. Se por um lado temos cada vez mais lançamentos interessantes e inesperados por aqui, empolgando todo mundo com ótimas surpresas, por outro temos uma parcela da comunidade mostrando tudo que tem de pior, formalizando todos os estereótipos negativos de uma só vez.

São muitos assuntos, muita coisa acontecendo. Algo que pegou todos de surpresa foi o anúncio de Konjiki no Gash Bell, mangá de Makoto Raiku, não pela Panini ou JBC, mas pela novata Editora MPEG. Um mangá grande, com mais de 30 volumes, que mesmo sendo muito querido e pedido pela comunidade brasileira, ninguém tinha lá tanta esperança de ver publicado aqui.

É um momento maravilhoso para se gostar de mangás no país. Nas prateleiras de qualquer banca você encontra As Bizarras Aventuras de JoJo, Boa noite Punpun, Jujutsu Kaisen, Haikyu!!, Chainsaw Man. Em breve vamos encontrar Sono Bisque Doll, Sangatsu no Lion e Shimanami Tasogare. Os preços, claro, seguem sendo cada vez mais inacessíveis, mas é inegável que essa variedade de títulos acabe tornando tudo mais interessante e animador.

E, no caso de você não ter dinheiro para as caras edições físicas ou simplesmente preferir ler seu mangá pelo celular, as edições digitais também estão com tudo, principalmente com a chegada oficial da Manga Plus no Brasil. O serviço de publicação online da editora Shueisha traz os capítulos mais recentes de forma oficial e gratuita em diversos idiomas, incluindo o português do Brasil.

É o baque que a pirataria estava precisando para cambalear por aqui, não é mesmo? Bem, talvez a pirataria no Brasil precise de um baque um mais forte.

O futuro não sei, mas o presente está uma bagunça…

Uma cria direta da pirataria de mangás no Brasil foi o caso envolvendo o dublador Guilherme Briggs. Com mais de 30 anos de carreira, ele já deu voz ao Super-homem e ao Scooby-doo, é a voz recorrente do Dwayne Johnson, Owen Wilson e Harrison Ford, nos animes está presente em Fairy Tail, Death Note, Fullmetal Alchemist, Chainasaw Man. Em algum momento da sua vida você ouviu a voz do Briggs em algum personagem, seja em filme, série ou anime.

Mas seu trabalho como o Demônio do Futuro, em Chainsaw Man, foi o estopim para que a agressiva discussão sobre a tradução pirata desse mangá voltasse com tudo.

As coisas já estavam bem estranhas. O mangá sempre foi extremamente popular e, antes mesmo de ser lançando legalmente no Brasil, já era lido por muita gente através de grupos de tradução e distribuição pirata. É importante salientar que o mangá já saía pelo aplicativo oficial Manga Plus, mas isso não foi o bastante para que o público do mangá recorresse à distribuição pirata.

O trabalho “de fãs para fãs” é muito fácil de achar, é tudo muito acessível. Acrescente a isso uma tradução cheia de piadinha de mau gosto e referências especialmente alocadas para que o internauta reconheça e publique em seu perfil. Não interessa se a tradução saiu do contexto. Não importa se a tradução descaracterizou o personagem. Ninguém liga se duas ou três minorias foram ofendidas naquela tradução. O importante aqui são os likes que ganhamos ou por ter dado risada de algo muito errado ou por querer criticar isso.

E assim nasceu o Demônio da Tradução Ruim.

Claro que esse demônio já existe há muito tempo, essa pauta não é nova. No trabalho de tradução muita coisa pode ser perdida se o tradutor não tiver boa cultura geral, se for alguém de ego inflado ou mesmo se tiver uma gramática capenga. O trabalho de tradução precisa ser feito por quem entende, domina e, acima de tudo, respeita a profissão.

O grande problema dos grupos de fãs que trazem mangás e animes de forma ilegal vai além da pirataria. Muitos deles, vale destacar, são tão ou mais competentes que muitos tradutores que se consideram profissionais. A questão aqui é quando eles vestem o manto da arrogância e se sentem acima de qualquer verdade, apagando a mensagem do autor para inserir uma piadinha ou comentário que seu círculo consiga identificar com o único intuito de massagear o próprio ego.

O perigo dessa prática narcisista resulta em casos como o do Demônio do Futuro de Chainsaw Man. As equipes brasileiras de legenda e de dublagem fizeram escolhas diferentes das feitas pelo grupo de tradução pirata mais famoso – e infame – e acabou enfurecendo uma base de fãs enorme. Esses fãs queriam as piadas que eles já conheciam, mesmo sendo erradas pelos mais diversos motivos. Eles queriam aquele mangá que eles pensavam que era Chainsaw Man, mas na verdade era só um amontoado de bobagens erradas feitas por um grupo irresponsável apenas para massagear o próprio ego. Eles queriam um futuro pica. O que ganharam? Uma tradução correta. Como resposta, começou-se uma extensa campanha de perseguição ao Briggs, pois já que ele era o Demônio do Futuro brasileiro, na cabeça desse pessoal era ele quem devia ser responsabilizado pela nova tradução de uma frase que já tinha se tornado icônica pelas mãos de um grupo duvidoso.

Essa discussão sobre traduções que mudam a mensagem original vai longe, pois não são só os grupos piratas que fazem isso. Vemos mais do que gostaríamos em trabalhos oficiais, é uma praga que precisa ser discutida com seriedade pela classe dos tradutores, indo além dos textões feito por entusiastas no Twitter.

Só para encerrar, como resultado de toda baderna e violência que a parte mais primitiva do fandom de Chainsaw Man fez desde que o episódio do Demônio do Futuro foi ao ar, Guilherme Briggs não só desativou sua conta no Twitter como pediu para ser removido da equipe de dublagem do anime. Uma perda imensa para um fandom que desde o começo foi ingrato e grosseiro para com tudo de incrível que eles estavam ganhando.

Apesar de tudo isso, o futuro parece promissor. Cada vez mais mangás sendo lançados no Brasil. Cada vez mais adaptações para anime sendo anunciadas. Cada vez mais novidades para quem gosta de verdade desse nicho – e não para quem está aqui só para reclamar, assediar os outros e encher o saco de quem está quieto no seu canto.