Repercutiu nos últimos dias um longo vídeo de um fã de mangá que resolveu publicar e vender mangás não licenciados no mercado brasileiro. Óbvio que eu não assisti, ando ocupadíssima revendo One Piece do começo – acabei de sair de Loguetown e estou no filler da ilha Gunkan, mas enfim.

Independente do que foi dito no tal vídeo, algo que chamou muita atenção e gerou muitos cortes e boas piadas foi a forma como essa pessoa enxerga a pirataria. É quase inocente como todo o processo de comprar a um mangá não licenciado, escanear, editar, mandar imprimir e colocar à venda no Mercado Livre com o mesmo preço de um mangá de editora que existe tipo a Panini, na cabeça dessa pessoa, é justíssimo. Mas não vim aqui entrar nos méritos de como ele tem um raciocínio desonesto e canalha de todo o processo editorial sério e da pirataria em si.

Tudo que a pirataria nos deu

O pessoal da minha geração e da geração anterior deve muito a pirataria. Enquanto na TV da nossa época tinha Sailor Moon, Guerreiras Mágicas de Rayearth, Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball e mais muitos outros animes que até hoje são lembrados com muito carinho, muito título obscuro, mas que lá no Japão era só mais um nome da programação, só chegou aqui porque algum nerd gravou em fita VHS, enviou pelo correio para algum outro nerd em outro país, esse nerd traduziu de ouvido, legendou e exibiu em algum encontro de fãs de anime e cultura japonesa.

Com o crescimento da internet veio junto a facilidade em fazer esse compartilhamento; agora não precisávamos mais enviar fitas e traduzir do ouvido direto do japonês, bastava falar com o pessoal dos grupos estrangeiros, na maioria dos EUA, baixar o vídeo do pessoal que upava direto do Japão e traduzir do inglês mesmo. Foi uma espécie de época de ouro para os fansubs, grupos que legendavam animes e disponibilizavam gratuitamente para que mais pessoas pudessem ver. O famoso “de fã para fã”.

A grande era de ouro da pirataria de anime (risos).

E o mesmo aconteceu com mangás. Quem é fã de shoujo sabe como foi difícil para as editoras brasileiras começarem a publicar as obras que as pessoas realmente pediam – e que só conheciam por causa dos grupos que traduziam mangás, os scanlators.

Esse assunto é muito complexo e extenso. Fansubs e scanlators não são os heróis e as editoras não são as vilãs, o Studio Ghibli não tem essa popularidade absurda no mundo por causa da pirataria, mas esses grupos de fãs trouxeram sim certa visibilidade para uma cultura que só chegava aqui no ocidente nos termos das grandes empresas (como a 4Kids). São muitas nuances, isso rende muita pauta para muita conversa.

Trabalho oficial vs Todos os outros tipos de trabalho

Botando tudo numa linha do tempo, a pirataria de animes e mangás foi relevante e de certa forma impulsionou um mercado com muito potencial até fins da década de 2000. Quem tem boa memória vai lembrar dos diversos canais oficiais voltados ao público otaku que nasceram e morreram ao longo dessa década. Enquanto isso, os fansubs continuavam a todo vapor num trabalho cada vez mais organizado e tão sério que muitos grupos se sentiam donos de obras que eles simplesmente pegavam na internet. Igual o camarada do começo do texto.

Todo o trabalho de tradução, revisão, sincronização e edição, tudo isso acabava ficando solto na internet, então pessoas com “visão empreendedora” baixavam esse conteúdo e vendiam em eventos ou mesmo online. Houve até caso de empresas de verdade pegando trabalho de fã e publicando como se fosse algo oficial.

A famosa mensagem “De fã para fã” num anime de 2006. Tempos mais simples.

Isso engatilhou nesses grupos um sentimento de proteção ao que eles faziam. Afinal, compartilhamento entre fãs sem fins lucrativos é pirataria? Se encaixa como crime? O trabalho desses grupos é trabalho de verdade? Isso é algo que até hoje nós discutimos porque devemos bastante a esses grupos, ao passo que muitos desses grupos ou acabaram vendo um potencial de lucro em seu trabalho, o que ia contra toda a filosofia ” de fã para fã” na qual isso tudo começou, ou tomaram um sentimento tão passional sobre as obras que pirateavam que acabaram perdendo a noção da realidade, querendo ter mais poder administrativo que as próprias editoras donas das licenças.

Nova era: um mundo sem piratas?

Tendo todo esse contexto em mente, chegamos num momento em que tem tanto serviço de streaming e tanta facilidade no acesso a animes e mangás de forma legalizada que fica até difícil acompanhar. Ainda que os preços dos mangás físicos das editoras seja proibitivo para muitos, serviços como o Manga Plus da Shueisha são muito baratos e trazem mangás muito bons com capítulos novos lançados traduzidos junto do lançamento oficial em japonês.

É nesse momento que os grupos de tradução de fã para fã deixaram de existir por uma necessidade real. O que vamos encontrar por aí de grupo nos moldes autênticos de antigamente são esses voltados a nichos muito específicos, como o pessoal que traduz Tokusatsu e Precure. Talvez um ou outro fã fazendo sua tradução solitária de alguma obra obscura até para os japoneses. E eles, claro, o pessoal que faz pelo próprio ego. Os empreendedores. Os CEOs de página de Instagram. Quem quer desesperadamente ganhar dinheiro com a cultura otaku, mas não consegue emprego na Crunchyroll ou na JBC porque, querendo ou não, eles contratam profissionais com um currículo minimamente compatível.

A grande era de ouro dos grupos de pirataria de material da cultura japonesa acabou, se é que um dia essa era realmente existiu, e o que restou agora é uma batalha de egos. Quem realmente manda em One Piece: o criador da obra Eiichiro Oda, o editor da editora Panini, os executivos da Netflix ou o fulaninho do grupo que pirateia a obra desde seu lançamento?

Voltando de novo no tempo vemos que essa batalha sempre existiu, esse sentimento de superioridade por ter tido acesso às fitas de anime velho, essa liberdade poética para apelidar as gerações mais novas de algum nome idiota pelo simples prazer de ser desagradável. E é algo que sempre vai existir em qualquer nicho do entretenimento, não é exclusivo nosso.

Porque, no fim, essas pessoas nem sequer gostam dessa cultura. Elas enxergaram uma oportunidade pra lucrar no bolso enquanto massageiam o ego manipulando os sentimentos de quem realmente gosta disso tudo. Aqui já estamos além dos fansubs e scanlators: entramos no domínio dos sites de stream e aplicativos pirata, estabelecimentos comerciais que usam imagens e ideias que fãs de verdade publicam na internet, pseudoeditoras… a lista é grande e ainda vamos ter muita chance de falar de todos eles.

A pirataria chegou num ponto em que virou só mais um negócio lucrativo e até ganhou um nome comercial mais bonitinho: publicação não oficial. Estão prontos pra essa conversa?