Berserk foi para mim, assim como para muitos, a porta de entrada para o mundo do seinen. Por ter uma arte incrivelmente detalhada e uma história repleta de violência, o mangá se tornou um dos principais exemplos do que muitos consideram uma obra adulta, ao ponto que muitos passaram por desmerecer o mangá inteiro devido a essa fama. Contudo, apesar desse preconceito ser entendível, a imagem que ele passa não poderia estar mais longe da verdade, pois muito mais do que uma jornada sombria marcada por monstros horríveis, Berserk é uma história sobre superar o niilismo e valorizar a vida.

O niilismo pode ser encontrado em abundância no mundo de Berserk. Ao misturar alguns dos momentos mais horríveis da história europeia, como a guerra dos 100 anos, a caça às bruxas e as Cruzadas, os cidadãos vivem em constante medo e cercados por batalhas e carnificina que tiram sua sensibilidade à tais profanidades. Além disso, o caráter religioso desses eventos dá ao clero uma grande influência sobre a humanidade. E a religião nesse mundo é confirmada como uma grande farsa, criada para manipular o povo e colocá-los em um estado de ignorância para serem peões de forças malignas.

Apesar da opressão religiosa e as guerras serem terríveis, o que mais contribui para o mundo de Berserk ser particularmente diabólico é a forma como os eventos influenciam os personagens a escolherem abrir mão da liberdade.

Em contraste com uma tragédia grega, por exemplo, onde os heróis clássicos lutam contra o destino para no final acabarem por sucumbir e, assim, ressaltar a insignificância humana perante a lei natural, os personagens de Berserk se encontram em um dilema muito mais sinistro. Por mais que o universo da obra esteja sob comando da God Hand, entidades capazes de manipular o fluxo da causalidade e decidir o destino de toda a humanidade, é confirmado que o livre-arbítrio existe nesse mundo. Porém, devido às terríveis condições que as pessoas se encontram, as opções são reduzidas à pobreza e à guerra, até que elas quebram e oferecem as únicas coisas boas que possuem para essas deidades e, após rejeitarem a humanidade, esses apóstolos do destino se tornam as forças mais devastadoras da terra.

Ou seja, em Berserk, a única maneira de fugir da dor e viver sem medo consiste em abrir mão de tudo o que te faz humano e se tornar mais um fator no perpétuo ciclo de miséria, que tanto lhes prejudicou.


Dois pontos que exemplificam esse aspecto se encontram no design dos apóstolos e no desenvolvimento de Griffith. Em relação aos servos da God Hand, é curioso como suas formas demoníacas geralmente se assemelham mais a uma extensão de seus corpos. Especialmente nos primeiros arcos, esse aspecto servia como lembrete do medo e fraqueza desses seres, pois ao invés de se transformarem por completo como fazia Nosferatu Zodd, o fanático por batalhas, monstros como Rosine e o Conde usavam seus poderes para se esconderem do terror de suas vidas passadas.

É por isso que as formas tomadas por esses e vários outros apóstolos sempre deixam seu corpo humano à mostra, pois esse detalhe junto de seus últimos momentos, marcados por medo e arrependimento, demonstram que acima de tudo essas criaturas não passam de humanos que sucumbiram ao desespero e camuflam suas dores na própria monstruosidade.


Com Griffith, esse tema é ainda mais interessante, pois acompanhamos os principais passos de sua jornada até se tornar o grande antagonista da obra. Durante a Golden Age, vemos a dualidade do comandante como o principal pilar que o torna um líder tão eficaz. Através da meticulosidade e frieza de seus atos, o falcão branco controla quaisquer campos de batalha, e junto de seu carisma natural, cria seguidores que creem que nenhuma barreira nesse mundo é alta o bastante para conter o seu voo.

Durante a obra, fica claro que Griffith se coloca em um pedestal acima de todos e que almeja controlar todos os aspectos em volta de si. Isso fica evidente quando nosso protagonista, Guts, deserda os falcões. Naquele momento o bando do falcão era o maior exército da terra, com seus membros prestes a se tornarem nobres, mas mesmo assim a saída de um único homem foi o suficiente para incomodar seu líder. E quando aquele que outrora fora chamado de herói do século se vê derrotado por seu subordinado, o falcão decide cortar suas próprias asas, e com isso vai em direção a sua ruína, de um galante e admirado líder, à um escravo de seus impulsos.

Após o eclipse, o arco de Griffith ganha uma catarse de enorme importância para o mundo ao sacrificar seus homens para se tornar um demônio – a conclusão do personagem é de uma ironia óbvia – por ir de alguém que almejava ir contra o destino ao maior agente dessa força. Contudo, creio que exista mais que uma camada irônica na temática desse arco, e a chave para isso se encontra em uma pequena cena no imaginário do falcão.

Nessa cena vemos o personagem extremamente debilitado e fraco, e aos cuidados de uma de suas subalternas, Casca – e curiosamente mesmo sem nenhuma glória, Griffith se mostra contente com essa vida, sem aspirações e com uma mulher e sua criança ao seu lado – em um lugar pacífico.

O que faz dessa cena tão importante para Berserk como um todo, é como textualiza esse personagem, por demonstrar que acima de sua busca por poder, ele buscava esconder o quanto se importava com seus companheiros em prol de sua ambição. O que faz com que o sacrifício dos falcões não seja apenas uma demonstração desumana, mas também uma ferramenta para Griffith se livrar de toda emoção que o desvirtuava de sua conquista. Não é à toa que seu primeiro ato como God Hand é violentar a mulher com quem acabara de fantasiar na frente do único homem que considerava um amigo.


Em contraste aos demais personagens que abandonaram seu livre-arbítrio em troca de poder, Guts se mantém fiel a sua humanidade enquanto desafia o destino ao invés de aceitá-lo como os demais. Durante sua jornada, o espadachim negro acaba por não conquistar nada significativo, os apóstolos que derrota não causam um impacto real nos God Hand, e há momentos como no arco da convicção onde o nosso herói acaba por ajudar seus algozes sem ao menos perceber.

Perante essa jornada que aparenta não possuir sentido e marcada pelas mais terríveis dores e criaturas, não é de se admirar que Guts contemple a loucura regularmente, pois ao menos assim, o guerreiro não precisaria se preocupar em ser mais um peão na espiral do destino.

O que torna Guts um elemento tão interessante nesse mundo é como toda sua existência parece ter sido feita para a tragédia. Desde que nasceu, fora considerado um mau presságio, e sofreu de toda forma possível dentro e fora do campo de batalha, ao ponto que para o protagonista a vida em si era um grande combate. O espadachim tem todas as razões do mundo para se entregar à escuridão e esquecer dessa terra que só o machuca, porém não o faz devido a seu amor por Casca e sua sede de vingança.

O conflito entre a humanidade de Guts e a fera da loucura que mora em seu coração são as engrenagens chaves no arco do protagonista durante a maior parte do mangá. Dois casos que evidenciam essa dicotomia se encontram na batalha contra o Conde, no início da obra, e o papel do espadachim no arco da convicção. Vistos de cima, esses arcos tem uma estrutura muito semelhante: nosso protagonista chega em uma vila habitada por um demônio, eles se enfrentam, no final tem uma aparição do Griffith e esses eventos acabam por causar um impacto massivo em uma menina das redondezas. Contudo esses arcos são os mais diametralmente opostos em sua significância temática e narrativa.

Na batalha contra o Conde, nosso protagonista era movido puramente por emoções negativas – seu ódio o guiava para o caminho da destruição, e junto de seu inimigo, o espírito de Guts também era destruído – pois além de fúria, havia uma profunda tristeza em seu coração.

Em contraste, no arco da convicção, o espadachim era motivado por seu desejo de proteger Casca. Devido a esse desejo, Guts acaba por depender e retribuir a ajuda de outras pessoas, o que resulta no final mais brando em termos de consequências negativas para o protagonista. Contudo os elementos mais destoantes entre esses arcos é a influência do espadachim em duas donzelas.

A filha do Conde vivia dentro de seu quarto, ignorante ao resto do mundo, e com os eventos do arco ela não só acorda para os horrores a sua volta como perde a única pessoa com quem se importava, sua inocência morre e ela passa de uma menina doce a alguém que jura a morte de seu algoz.

Farnese, por sua vez, é um caso bem mais complicado, por ser filha de uma família nobre e possuir tendências destrutivas, a jovem foi obrigada a liderar um grupo de cavaleiros em nome da igreja, tudo pelo status social e para conter seus desejos que eram considerados inadequados. A cavaleira passa a perseguir Guts não só pelo dever, mas também pelo desdém absoluto que o fugitivo tinha da religião e sua capacidade de verdadeiramente enfrentar as forças do mal, o que colocou a forma como Farnese vê o mundo em contradição. Isso culmina com clímax do arco, onde ela viu que as intenções do espadachim negro eram puras e, acima de tudo, não propagavam o terror como o clero.

A influência que nosso protagonista teve em Farnese foi tão grande que, no final do arco, a donzela decide acompanhar o espadachim em suas viagens. Esse acaba por ser um dos momentos mais relevantes de Berserk, pois ao romper com seus laços com a aristocracia e o clero, Farnese e Guts quebram o ciclo da miséria. Ao se desprenderem de suas obsessões com a igreja e com a vingança, o espadachim e a donzela negam continuar por um caminho onde tudo que causam é a dor dos inocentes, em prol de pessoas com as quais se importam. Os dois escolhem ser a melhor versão de si mesmos e, por mais que ambos ainda tenham seus próprios demônios para enfrentar, a influência positiva ao redor torna esse combate muito mais fácil. Com Guts, cuja fúria se torna a melhor arma para proteger seus amigos, e Farnese, que canaliza sua atração pelo caos para o estudo da magia, o que quebra de vez a influência negativa que a igreja exercia sobre ela.

Guts e Farnese passaram por traumas que poderiam facilmente quebrar uma pessoa, por mais que os dois ainda tenham demônios para enfrentar e que o mundo esteja para desabar a qualquer momento. Ainda perante a todo esse terror, é reconfortante como Guts consegue tornar sua espada em uma força do bem e ganhar cada vez mais aliados durante sua jornada, os quais apesar de não solucionarem seus problemas lhe proporcionam pequenos momentos de ternura.


Apesar de alguns desses momentos serem minhas cenas favoritas de todo o mangá, como quando o grupo caminha pela praia e contemplam a felicidade de Casca ou quando nosso protagonista age como um pai para a bruxa Schierke, ainda tem uma cena que exemplifica o otimismo do mangá ao máximo.

Após o arco da convicção, Guts e seu grupo chegam a um vilarejo e eles se aliam a já citada bruxa para proteger seus habitantes de um grupo de monstros. Durante esse conflito, o grupo tem seu progresso interrompido várias vezes por um padre, mais um fundamentalista religioso que não consegue enxergar uma solução além do escopo da sua igreja, e com isso acaba por quase jogar todo o trabalho do grupo principal e a vida de vários inocentes no lixo.

Contudo, mesmo após toda essa ignorância, Schierke mantém o respeito pelo padre, e afirma que seus atos e crenças não são diferentes dos dela, pois também guiam para a paz e o engrandecimento do espírito. Essa é mais uma quebra do ciclo da miséria, pois Schierke evitou mais um conflito entre religiões, simplesmente por não se render a um extremo e por enxergar a melhor versão possível de um inimigo, assim rejeitando o passado marcado por intolerância por um futuro que torna o mundo um pouco melhor.

Como muitos devem saber, recentemente o autor de Berserk, Kentaro Miura, veio a falecer. E por mais que muitos ainda lembrem de seu trabalho por sua incrível arte, sua habilidade em desenhar monstros e por seu trabalho ter sido a grande porta de entrada de muitos para um lado mais de nicho da indústria dos mangás, acho importante que também lembremos do que esse homem nos ensinou nas últimas três décadas. Que o mundo não é um abismo sem esperança, que há pessoas boas lá fora, a apreciar os pequenos momentos, e que não importa o quão horrível seja o cenário em que nos encontremos, sempre é possível se reerguer e seguir em frente.